Gravuras rupestres são vandalizadas no interior de MT

Pela cosmologia do povo Waurá, foi numa pequena gruta na margem esquerda do Rio Tamitatoala, em Paranatinga, no Mato Grosso, que o mundo surgiu.

Lar de Kamukuwaká, o primeiro dos guerreiros, a caverna abriga gravuras rupestres inscritas nas paredes de pedra há centenas, ou talvez milhares de anos — elas integram a cultura dos Waurá e de outros povos do Parque Indígena do Xingu. Apesar de tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Caverna de Kamukuwaká carece de proteção, e teve parte de suas gravuras vandalizada.

“Estamos todos chocados. É um patrimônio espetacular, não só pelos registros rupestres como pela associação que os Waurá têm com aquele lugar”, lamenta Flávio Rizzi Calippo, diretor do Centro Nacional de Arqueologia do Iphan.  

 

“Nós até temos em sítios arqueológicos de muita visitação casos de pichação, mas uma destruição dessa dimensão, de retirarem as gravuras intencionalmente, é algo de que não temos notícia”.

O vandalismo foi notado em visita técnica do Iphan, entre 20 e 22 de setembro. A dimensão dos danos ainda está sendo avaliada, mas atinge grande parte das gravuras expostas. Os técnicos que estiveram no local informaram que estavam acompanhados de policiais militares, que constataram que os danos foram intencionais. Fotografias mostram as paredes de pedra descascadas apenas nos locais onde estavam as inscrições. O Iphan já encaminhou denúncia para o Ministério Público Federal e para a Polícia Federal.

Questionado sobre a possibilidade de restauração, Calippo disse não acreditar na possibilidade, apesar de as avaliações ainda estarem em curso. A esperança é a recuperação de gravuras que estavam soterradas e não foram destruídas pelos criminosos.

O processo de tombamento da Caverna Kamukuwaká foi iniciado na década passada, mas apenas em 2016 ela foi incluída no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do Iphan. Calippo explica que a inclusão no sistema nacional do patrimônio arqueológico não restringe o trânsito de pessoas nem retira a propriedade da terra, como no caso de parques e reservas. A gestão do patrimônio é responsabilidade das esferas federais, estaduais e municipais, além do proprietário, que é alertado sobre a importância do bem.

Como a caverna está numa região isolada e não recebia muitos visitantes, a proteção acontecia apenas pela instalação de placas alertando sobre a existência do sítio arqueológico. Para a arqueóloga Suzana Hirooka, da consultoria Archaeo, as medidas não eram suficientes. Nos últimos anos, ela fez algumas visitas para a elaboração de um relatório técnico para a construção de uma rodovia na região, e notou a presença de pessoas que usavam o local para se banhar no rio, para a pescaria e até para churrascos.

“É um cenário muito bonito, com cachoeiras e uma parede de rochas numa das margens, que tem gravuras rupestres. A maior parte é de figuras geométricas”, relatou Suzana. “Quando trabalhei lá, estava bem preservado, mas era clara a presença constante de pessoas, com restos de fogueiras e de acampamentos de pescadores”.

Onde surgiu o Mundo

Pela mitologia Waurá, a caverna serviu de morada para o guerreiro Kamukuwaká, um ser mitológico que surgiu antes da criação do mundo. É a partir dele que todos os mitos e costumes desse povo foram elaborados. Uma das lendas, por exemplo, cita uma batalha na qual Kamukuwaká foi ferido nas orelhas por Kãmi, o Sol. É essa a origem da cerimônia de “furação das orelhas”, ou pöhöká, uma festa ritual onde os novos caciques são escolhidos e têm as orelhas furadas.

O estudante de arqueologia Kamarife Waurá, filho do cacique Takapé Waurá, conta que pela cosmologia de seu povo as figuras foram gravadas nas paredes de pedra pelo próprio Kamukuwaká. Por isso, elas inspiram até hoje os grafismos de cerâmicas e cestas e as pinturas corporais. As visitas dos índios ao local não são frequentes, pois a caverna está fora dos limites do Parque Nacional do Xingu, e a viagem é longa. A aldeia principal, que abriga cerca de 400 pessoas, fica a oito horas de barco. Ulupuwene, a aldeia mais próxima, fica a cerca de 20 quilômetros da gruta.

“O Kamukuwaká é um local sagrado, de onde surgiu a cultura Waurá”, contou Kamarife.

“Foi Kamukuwaká quem fez essas gravuras. Ele que mostrou como desenhar um peixe, como nós devemos pintar o rosto e o corpo. Todas as gravuras têm seu significado”.

Texto: O Globo