Especialistas e até a indústria do tabaco concordam que cigarro eletrônico faz mal

Ele já foi muito alardeado como uma estratégia segura para quem quer parar de fumar, e, embora tenha venda proibida no Brasil, não é difícil comprá-lo na internet ou até em lojinhas de rua. No entanto, o cigarro eletrônico reúne hoje em torno de si um consenso entre especialistas: ele carrega, sim, substâncias que prejudicam a saúde, portanto o seu uso oferece riscos que incluem problemas cardiovasculares e câncer de pulmão. Até a indústria do tabaco admite isso.

A vantagem é que ele tem bem menos do que as 4.700 substâncias do cigarro convencional. Por isso, ajuda a diminuir o risco à saúde daquelas pessoas que não conseguem largar o vício de jeito nenhum. O novo mantra dos médicos e pesquisadores nessa área é “redução de danos”. O medo, no entanto, é de que a falsa sensação de que os e-cigars são seguros acabe estimulando o fumo entre pessoas que, de outro modo, nem se tornariam fumantes.

— Consideramos que o cigarro eletrônico é menos nocivo do que o tradicional, mas, ainda assim, nocivo. A melhor opção é não fumar, ou abandonar o fumo — destaca Tânia Cavalcante, médica do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e e secretária executiva da Comissão Nacional para o Controle do Tabaco (Coniq).

No Brasil, a venda desses dispositivos nunca foi permitida. A proibição oficial veio em 2009, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alegou não haver estudos científicos suficientes. Mas a previsão é de que o assunto entre novamente em pauta nas discussões da Anvisa até 2020. Isso porque o órgão incluiu o subtema “Novos tipos de produtos fumígenos – Dispositivos eletrônicos para fumar” em sua Agenda Regulatória 2017-2020, então, dentro desse período, o tema deverá ser aberto para consulta pública.

— Atualmente, temos a necessidade de nos posicionar cientificamente sobre esse assunto. Por isso é importante trazer a discussão para a academia — afirma Gisele Birman Tonietto, professora de Química da PUC-Rio e organizadora de um seminário sobre cigarro eletrônico realizado ontem na instituição. — Eu não conheço no Brasil linhas de pesquisa de química sobre o tema em universidades, e isso é algo que precisamos incentivar.

O primeiro cigarro eletrônico surgiu em 2003, inventado pelo farmacêutico chinês Hon Lik, que depois vendeu sua patente para a Imperial Tobacco, uma multinacional britânica.

No lugar da queima de folhas de tabaco, o dispositivo trabalha com uma bateria, um vaporizador e um cartucho, que é trocado por refis. Esse cartucho pode ser preenchido com um líquido composto de propilenoglicol, substâncias aromatizantes e nicotina — o elemento responsável pela dependência. Mas outras substâncias podem ser acrescentadas, já que a maioria dos países não tem uma legislação sobre isso.

Em nações como China e Reino Unido, a venda desses aparelhos é liberada. Outras como Dinamarca e França legalizaram a venda, mas com uma série de medidas restritivas, como o controle de publicidade — tal qual o que é feito em relação aos cigarros convencionais. Nos Estados Unidos, a comercialização e as regras de utilização variam de acordo com o estado.

Uma das principais polêmicas é sobre a eficácia de usar o cigarro eletrônico para parar de fumar. O usuário, em tese, pode colocar gradualmente menos nicotina no cartucho e, assim, deixar o vício em algum momento. Mas, em geral, as pessoas simplesmente não diminuem a quantidade de nicotina, o que as faz apenas trocar uma dependência por outra.

Além disso, como o cigarro eletrônico tem menos de 15 anos, ainda não há estudos que mostrem o efeito do seu uso a longo prazo.

Solange Cristina Garcia

Coordenadora do Laboratório de Toxicologia da UFRGS

 

A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ressalta que não existe cigarro seguro, qualquer que seja ele. Tendo isso em vista, Solange diz que é possível trabalhar com uma “escala de riscos”, na qual o cigarro mais perigoso para a saúde é o convencional, seguido dos dispositivos feitos com tabaco aquecido, e, em terceiro lugar, os cigarros eletrônicos.

— O cigarro eletrônico e o cigarro de tabaco aquecido são quase a mesma coisa na aparência, e muita gente os confunde porque a indústria os trata como sinônimos, mas eles têm composição química bem diferente. O eletrônico tem apenas nicotina e alguns outros componentes. Enquanto isso, o tabaco aquecido tem muito mais substâncias, a maioria delas nocivas, afinal ele continua usando plantas de tabaco. E, sobre ele, não há estudos confiáveis.

A especialista também destaca que é irreal defender que o cigarro eletrônico pode ser usado como estratégia para parar de fumar.

— Ele tem nicotina, então, se a pessoa não reduzir a quantidade de nicotina do aparelho, nunca vai deixar de fumar. E é isso o que mais se vê. As pessoas dificilmente reduzem.

Paulo Saldiva

Diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP)

 

Ao ser questionado sobre a possibilidade de o cigarro eletrônico trazer danos à saúde, o especialista é taxativo:

— Nada que você queima, põe na boca e aspira emite perfume — pontua ele, acrescentando que algum grau de risco sempre vai existir, mesmo que a tecnologia envolvida na produção de cigarros eletrônicos evolua.

Saldiva explica que o cigarro eletrônico contém propilenoglicol, álcool que, quando queimado, pode gerar aldeídos, substâncias conhecidas por causar doenças. Mesmo assim, a quantidade desses aldeídos é infinitamente menor do que a dos cigarros tradicionais.

— Não há dúvidas de que o cigarro eletrônico faz mal. Mas o convencional faz um estrago muito maior e mais rapidamente. Então, para dar auxílio a quem não consegue abandonar o convencional, talvez tenha lógica usar o eletrônico.

Saldiva ressalta que a resistência à adoção do e-cigar e a lentidão em estudá-lo é culpa da própria indústria:

— Há, por exemplo, indícios desde os anos 1930 de que o cigarro convencional faz mal, mas por muito tempo a indústria acobertou isso. Então todo produto que ela cria gera desconfiança.

Tania Cavalcante

Médica do Instituto Nacional de Câncer (INCA)

 

A médica considera que qualquer política pública que venha a abrir o mercado brasileiro para os cigarros eletrônicos precisa ter como foco garantir o acesso desses dispositivos somente a pessoas que já fumam e que não conseguem deixar o tabagismo por meio de tratamentos.

— Essas pessoas existem e não podem ser ignoradas. O cigarro eletrônico pode ajudar — destaca ela. — Mas é fundamental que sejam impedidas práticas de mercado que estimulam crianças e adolescentes a experimentar cigarros eletrônicos. Nos EUA, esse produto começou a ser vendido em 2007 como sendo absolutamente seguro, e aí houve um boom de consumo entre adolescentes. Possivelmente, há aqueles que nunca experimentariam e só passaram a usar por conta dessa propaganda.

Tania concorda que o cigarro eletrônico tem bem menos substâncias tóxicas do que o convencional, mas não tem certeza sobre os efeitos disso na prática:

— A gente sabe que as pessoas estarão menos expostas a substâncias tóxicas, mas a gente não sabe se isso de fato se traduz em menos doenças. É preciso estudos de longo prazo.

James Murphy

Membro da British American Tobacco, maior empresa do mundo do setor

James Murphy é diretor da Unidade de Fundamentação de Risco Reduzido da British American Tobacco, a maior fabricante de cigarros do mundo, com sede em Londres. A multinacional é controladora, por exemplo, da brasileira Souza Cruz. Ele admite que nenhum produto de tabaco pode ser considerado sem riscos.

— O que alguns dos melhores cientistas em saúde pública do Reino Unido estão dizendo é que os cigarros eletrônicos ofereceriam 5% de risco para a saúde. Sempre vai haver algum risco. Há possíveis danos cardiovasculares, riscos para a função do pulmão. Quando o cigarro eletrônico solta glicerol, ele pode afetar o funcionamento do pulmão. Mas há uma redução substancial de risco em relação aos cigarros convencionais — afirma ele.

Na avaliação de Murphy, esses aparelhos são mais eficazes para o fumante deixar o tabagismo do que adesivos ou chicletes de nicotina.

— O cigarro eletrônico mantém o gestual do ato de fumar, que é parte do prazer para a maioria dos fumantes. Então a transição dos cigarros convencionais para os e-cigars é mais fácil do que para adesivos ou chicletes.

Texto: Extra